Coluna Folha de S.Paulo
Disputa por acervo de Kafka reverbera sua identidade complexa
“Além de refletir sobre o impacto do exílio e da emigração no destino de Brod, Balint convida o leitor a se questionar sobre a quem realmente pertenceria o legado de um autor como Kafka, cuja identidade literária é complexa e se assemelha à dos híbridos da sua própria ficção, ao exemplo de Gregor Samsa, protagonista de "A Metamorfose" (1915).”
Provocação*
Outro dia alguém me perguntou como poderíamos pensar a partir da nossa realidade, sem recorrer ao pensamento estrangeiro ou colonialista. Acho, aliás, que esta foi a expressão usada pelo meu interlocutor: colonialista.
A verdade, no entanto, é que, para mim, todo pensamento é estrangeiro ou pelo menos estranho e marginal em relação ao que costumamos fazer ou gostaríamos de ser. Pois, quando pensamos, nos deslocamos do lugar comum e questionamos o que anteriormente tínhamos por certo e evidente.
Quem coloniza impõe certezas, quem pensa questiona e se sente à vontade para duvidar de tudo um pouco.
* Quer saber a minha opinião sobre um determinado assunto? Envie a sua pergunta que eu respondo na próxima newsletter!
Citação
“Kierkegaard, Marx e Nietzsche são para nós como marcos indicativos de um passado que perdeu sua autoridade. Foram eles os primeiros a ousar pensar sem a orientação de nenhuma autoridade, de qualquer espécie que fosse; não obstante, bem ou mal, foram ainda influenciados pelo quadro de referência categórico da grande tradição. Em alguns aspectos, estamos em melhor posição. Não mais precisamos nos preocupar com seu repúdio pelos “filisteus educados”, os quais, durante todo o século XIX, procuraram compensar a perda de autoridade autêntica com uma glorificação espúria da cultura. Hoje em dia, para a maioria das pessoas, essa cultura assemelha-se a um campo de ruínas que, longe de ser capaz de pretender qualquer autoridade, mal pode infundir-lhe interesse. Este fato pode ser deplorável, mas, implícita nele, está a grande oportunidade de olhar sobre o passado com olhos desobstruídos de toda tradição, com uma visada direta que desapareceu do ler e do ouvir ocidentais desde que a civilização romana submeteu-se à autoridade do pensamento grego.”
—Hannah Arendt, “A Tradição e a Época Moderna” em Entre o Passado e o Futuro
Sugestão de leitura
O livro que acabei de ler e sobre o qual escrevi na minha coluna da semana para a Folha: O Último Processo de Kafka, de Benjamin Balint.
Sugestão de podcast
Do Lado Esquerdo do Muro é o melhor podcast brasileiro sobre Israel e o Oriente Médio. Vale a pena conferir.
A ironia é que a própria discussão sobre descolonização veio de fora. Tanto que usamos o anglicismo decolonial, e não deScolonial, que seria o mais intuitivo em português. Negar o que nos é estrangeiro não nos faz mais autênticos e originais, mas mais tacanhos e obtusos.